Em seu artigo A aparição do demônio na fábrica, no meio da produção, editado em Novembro
de 1994, esse texto foi sugerido pela professora Luci Praun e a Priscila
Kijuchi como uma reflexão sobre o que aprendemos no dia 28 de Fevereiro na
UMESP – Rudge Ramos na Aula Magna, onde o Sociólogo José de Souza Martins
esteve ministrando para nós discentes de Ciências Sociais, foi excelente poder
ouvi-lo assim como em várias outras vezes onde a coordenação do curso tem
preparado essas aulas Magnas com outros palestrantes onde temos aprendido
muito.
A
proposta que fora colocado para nós é que identifiquemos “A relação entre a experiência pessoal e as relações de trabalho que
permeiam o ambiente no qual o autor elabora a pesquisa”.
Queremos
dividir em duas partes, a primeira é sobre a experiência pessoal, conforme
Martins “... Depois que me tornei
sociólogo e professor universitário, pensei em registrar o que havia
testemunhado e fazer um pequeno estudo sobre aquela ocorrência. Justamente a
sua raridade permite um melhor conhecimento do que é o trabalho e a experiência
do trabalho na concepção do próprio trabalhador”.
Pensamos
que essa experiência que Martins passou com certeza, serviu de no primeiro
momento de aprendizagem e depois objeto de estudo para esclarecer hoje alguns
fenômenos sociais. Conforme diz, “...
fato de que na sua relação com a fábrica, enquanto objeto de estudo...”.
Portanto
percebemos que nesse artigo Martins realmente volta no tempo para resgatar
alguns valores ainda quando era operário, conforme diz ele, “Em face dessa circunstância incomum,
procurei cercar-me de garantias de que essa reconstituição seria feita com
objetividade. Quando tomei a decisão de fazer este estudo, redigi um extenso
texto registrando o mais minuciosamente possível todas as lembranças que tinha
da ocorrência e de suas circunstâncias. Rememorei, também, e anotei
detalhadamente todos os momentos do processo de trabalho, desde a chegada do
barro das jazidas até a saída dos produtos da empresa. Depois disso, procurei
localizar antigos empregados da fábrica para recolher deles referências
igualmente minuciosas a respeito do mesmo assunto e a respeito da aparição do
demônio. De modo que minhas próprias anotações pudessem ser conferidas e
confrontadas com as lembranças que tinham. Entrevistei demoradamente dois
engenheiros diretamente envolvidos nos acontecimentos, o antigo chefe da seção
do pessoal, o antigo mestre da seção de ladrilhos e o padre que foi chamado
para celebrar a missa e benzer as novas seções e as operárias. Várias
testemunhas importantes já haviam falecido quando decidi fazer esta
reconstituição. Entre elas, o mestre e a contra-mestre da própria seção de
escolha de ladrilhos”. Com essa postura o sociólogo precisa ir a campo para
dar veracidade daquilo que vai apresentar isso serve de lição prática para nós
e não nos conformarmos em ficar somente na teoria quando se trata de fenômenos
como esse, muito bom isso!!!
Para
destacar aqui a experiência pessoal percebemos no texto que Martins se lembra
do seu primeiro emprego, isto, é sua função nessa fábrica quando diz, “Minha reconstituição de memória dos fatos,
das circunstâncias, dos equipamentos e dos procedimentos adotados na produção
na Divisão de Terra Cota foi completa e detalhada. De modo geral, as
entrevistas me mostraram que guardei melhor e mais completa lembrança do
acontecido do que os mestres e engenheiros, com exceção do próprio diretor da
Divisão de Terra Cota, com quem eu trabalhara diretamente e de quem eu fora office-boy”.
Interessante
que na sua pesquisa de campo quando está entrevistando um dos engenheiros, este
não se lembra de Martins, mas sim que “havia no escritório um menino que levava
papéis do diretor da divisão para um dos diretores da empresa”.
Martins segue sua volta ao tempo para trazer elementos para
esse artigo, apesar de, “O
trabalho que eu fazia era irrelevante e não tinha a menor visibilidade no
conjunto das complicadas atividades do escritório de engenharia em que eu
trabalhava. Localizado no centro do conjunto de edifícios da Divisão de Terra
Cota, era o lugar da atividade intelectual que regulava toda a produção daquele
setor. Foi, também, o centro nervoso das tensões que ocorreram naquele período
em função dos vários problemas de ajustamento técnico que surgiram com a
inauguração de uma nova seção de prensagem de ladrilhos, um novo forno contínuo
ou forno túnel para queima dos materiais e uma nova seção de escolha e
embalagem”, conforme
Martins.
Continua,
“O meu trabalho era, justamente, o de
fazer coisas pelas quais eu não fosse notado: limpar as mesas e os objetos a
cada certo tempo, durante o dia, para remover o pó fino que caía
permanentemente sobre tudo e sobre todos; servir café aos engenheiros e aos
mestres que por ali passavam entregar documentos nas seções e nos escritórios,
levar recados, chamar pessoas. Todas essas atividades eram completamente
irrelevantes para as funções essenciais do escritório da Divisão de Terra
Cota”.
Martins
na sua experiência pessoal destaca que sua função é irrelevante e diz “A fala do engenheiro e do mestre me mostraram que eu
pertencia ao grupo de adolescentes que por suas atividades eram pessoas insignificantes no conjunto das relações
sociais da empresa. Mas, um insignificante substantivo. Refiro-me aos
adolescentes que faziam serviços auxiliares nos pequenos escritórios do interior
da fábrica, fora das grandes seções”.
Queremos desde já destacar as relações de trabalho até
porque esse artigo é cativante, pois tem uma linguagem romântica que nos prende
de forma bem natural e não queremos perder aqui o foco dessa atividade,
portanto Martins aponta agora a função dele e de outros adolescentes e as
relações que tinham nessa fábrica quando diz, “Os adolescentes, como eu, podiam ver tudo
porque eram funcionalmente invisíveis aos muitos olhos que disfarçadamente, como era
necessário, vigiavam o que ocorria no interior da fábrica. Não só porque
as pessoas de algum modo, segundo as concepções da época, tinham que estar
sob vigilância para que não viessem a fazer aquilo que não estava prescrito
em sua
rotina
de trabalho. Mas, também porque, como em qualquer fábrica, são muitos os perigos que ela
encerra. Um pequeno descuido num canto de um setor secundário pode provocar
um acidente ou desencadear um incêndio. Foi o que ocorreu na seção velha de prensagem de
ladrilhos, quando uma distração do operário encarregado de fundir parafina e outros
derivados de petróleo para limpeza dos estampos provocou um incêndio que
poderia ter levado a uma grande destruição”.
Cremos que esse momento na vida de Martins não foi em vão
até porque nesse momento de insignificância a qual ele supera lhe proporciona
uma riqueza de detalhes para esclarecer o tema desse artigo, exercendo nesse
momento de sua história uma habilidade de um sociólogo, portanto diz Martins “A minha inserção
insignificante e quase invisível no próprio centro de decisões do conjunto da Divisão
de Terra Cota e a minha mobilidade no seu interior por vários anos puseram-me,
de fato, sem que eu evidentemente o soubesse, na condição de um etnógrafo espontâneo. Minha
memória
registrou
até mesmo as relações de parentesco que havia entre vários mestres e, também, as
dificuldades que tinham para lidar com a cultura letrada e universitária dos engenheiros”.
Agora queremos discorrer em “Como o autor conjuga a interpretação subjetiva, isto é, o fato das
mulheres terem visto a aparição de um demônio na fábrica, com a interpretação
objetiva da realidade de trabalho na empresa, isto é, a introdução repentina de
um novo ritmo de trabalho para as operárias de maneira brusca”.
Penso que conforme diz Martins “A
minha suposição é a de que a aparição do demônio na seção de escolha da
Cerâmica São Caetano, em 1956, explica-se pelas circunstâncias da transição que
a fábrica estava sofrendo naquele período. Para os engenheiros e para a direção
da empresa a adoção de critérios impessoais no relacionamento entre eles, os
mestres e os operários era uma decorrência natural da modernização da empresa e
uma necessidade derivada do novo e conseqüente padrão de racionalização do
trabalho. As evidências que colhi, porém, e minhas próprias observações na
época indicam que do lado dos mestres essas mudanças foram recebidas com
preocupação e resistência. A aparição do demônio onde supostamente não houve
qualquer mudança no processo de trabalho, a seção de escolha, foi expressão dos
temores gerados pelo conservadorismo desses setores colocados à margem das
inovações e/ou das decisões que levaram a elas. Foi a forma que o imaginário
das operárias deu às inovações para compreendê-las no conflito que encerravam”.
Portanto
Martins busca bases teóricas para demonstrar uma ação do capitalismo e o
domínio sobre os operários nesse momento da história em que pesquisa com sua
experiência pessoal, sua relação trabalhista “dentro” desse objeto de pesquisa
que é a fábrica e agora, “Essa diversidade de relações com o objeto de trabalho parece
sugerir
que
ao longo do processo e nas diferentes seções havia diferentes modalidades do que Marx chama de
sujeição do trabalho ao capital (e poderíamos falar, também, em diferentes graus dessa
sujeição). Mas, penso que é possível mostrar que ao invés de diferentes
modalidades de sujeição, estamos em face de diferentes formas sociais da sujeição
especificamente capitalista do trabalho ao capital. Como é sabido, Marx distingue
entre sujeição real e sujeição formal do trabalho ao capital (Marx, 1971, p. 54
ss.). Na sujeição formal, o artesão mantém os procedimentos artesanais e o saber que os sustentam.
O capital compra a sua
força de trabalho para se apossar do produto, sem se apossar, no entanto, do
modo de fazer as coisas, isto é, do processo de trabalho. Seu domínio se limita,
em princípio, ao processo de valorização, pois o que compra, nesse caso, é, antes de tudo,
tempo de trabalho e não modo de trabalhar. A dominação do capital sobre o trabalho aparenta
ser uma dominação externa (Marx, 1981, p.402). A alienação do trabalhador se
dá estritamente em termos da alienação do seu trabalho. Mas, não alienação
de sua
consciência
profissional, que permaneceria, assim, um contraponto crítico ao processo de trabalho
capitalista”.
Com essas bases teóricas Martins enriquece ainda mais seu
artigo, pois prova que o que ocorre na fábrica tem uma explicação, seria como
se essa “subjetividade” fosse explicada com “objetividade”. Conforme Martins,
digo em minhas palavras “estava havendo uma mudança radical naquela fábrica até
porque seus funcionários principalmente os de chefia eram todos de parentes”,
portanto conforme diz Martins, “A
grande maioria dos operários da Cerâmica era constituída de migrantes da zona
rural que chegaram ao subúrbio com a crise do café nos anos trinta, quando a
cidade de São Paulo viveu um importante surto industrial. Nos próprios anos
cinqüenta, houve um grande fluxo de migrantes rurais do Nordeste do país e de
Minas Gerais rumo ao subúrbio. Nos trabalhos pesados das prensas e dos fornos
era notória a presença de nordestinos. As moças das seções velhas, e novas de
escolha de ladrilhos eram na maioria filhas desses migrantes, cuja vida nos
chamado Bairro da Cerâmica e Vila São José, ao lado da fábrica estava
impregnado de valores católicos tradicionais e rurais”.
Portanto
Martins resgata algo interessante quando diz que, “Não surpreende, portanto, que um ingrediente desse imaginário, o
demônio, emergisse no esvaziamento cultural promovido pelas transformações
técnicas que a fábrica levara ao seu trabalho. Nesse sentido, foi alienada
manifestação de resistência. Resistência a que e em nome de que? Há que
considerar aí dois planos. De um lado, o do entendimento imediato que das
mudanças podiam ter os trabalhadores, em particular as operárias da seção de
escolha, na situação técnica e social em que trabalhavam. Mas, de outro,
também, os acontecimentos, as pequenas conspirações e os pequenos boicotes
cotidianos, sobretudo a aparição do demônio, sugerem uma resistência implícita
além do imediato e do imediatamente perceptível: uma crítica na própria ação,
como a denomina Lefebvre (1958, p.18), às transformações técnicas e sociais
pelas quais a fábrica estava passando”.
No
nosso modo de pensar aquelas mulheres que tinham consigo uma cultura religiosa
e que já fazia parte do seu dia-a-dia práticas, tais como passar na igreja e
fazer uma prece ou reza e depois se dirigir para a fábrica e até mesmo pelas as
circunstâncias que as cercavam, tais como morarem próximo da fábrica, tendo um
bairro onde seus moradores trabalhavam ali, a questão do parentesco e muitos
ocupando cargo de liderança na fábrica que além de religiosos podiam
influenciar através de seu “Status” aquelas mulheres para atingir seus
propósitos até porque esses líderes não aceitavam as mudanças que naturalmente
estavam surgindo, e havia uma discórdia entre os mestre e os engenheiros conforme
destaca Martins, “O que surpreende é a eficácia desse tradicionalismo rural
invadindo a grande indústria e a produção moderna e nelas se recriando
e se atualizando. A aparição do demônio tem sido até os dias de hoje
freqüentemente mencionada em estudos sociológicos e antropológicos na América Latina.
Inicialmente o demônio esteve associado ao ouro, o que claramente nos
remete ao imaginário medieval e às concepções difundidas pelos
missionários na época da Conquista. Depois foi associado ao dinheiro e eu mesmo
encontrei imaginosas associações desse tipo entre camponeses da Amazônia no
recente período de expansão capitalista naquela região. Na cultura popular
do Nordeste do Brasil tal como é apreendida pela chamada literatura de
cordel, o inferno é concebido como um depósito de mercadorias. O caso da
aparição do demônio na Cerâmica revela que ele foi também associado aos meios
capitalistas de produção, máquinas e instalações. À medida que a riqueza
muda de forma, a expressão do mal, que é satanás, também migra de uma forma
a outra”.
Pretendo encerrar essa atividade destacando, “Qual a importância destes dois aspectos a
interpretação subjetiva e interpretação objetiva para a pesquisa sociológica”,
e conforme Martins “... as
contradições da riqueza, enquanto fruto do trabalho e instrumento de opressão
do trabalhador, assumem uma figuração humana, no falso humano que é o demônio,
na sua capacidade de assumir forma humana sem humano ser. Por meio dele, o
invisível, que é a força impessoal do processo de trabalho capitalista, se
torna visível. É por meio da figuração do poder do mal que essa força se
permite ver e conhecer. O caso da Cerâmica indica que na cultura operária, de
certa fase ao menos e na circunstância da coexistência de tempos distintos da história
do trabalho, pelo atalho da aparição que revela a força do mal, o trabalhador
toma consciência do duplo e contraditório caráter do trabalho: concreto e
abstrato. Também toma consciência da força objetiva do trabalho social que se
tornou uma força do capital. E da permanente coexistência dos opostos na
produção, o que se vê e o que não se vê, mas é e está lá”.
Verificando ainda o artigo e lendo as notas que
são sugeridas no texto conforme pontua Martins queremos destacar aqui que “Na análise do fetichismo da mercadoria,
Marx já havia assinalado que ela “é um objeto endemoninhado, rico em sutilezas
metafísicas e reticências teológicas”. E acrescentou: “O misterioso da forma
mercantil consiste, simplesmente, em que a mesma reflete ante os homens o caráter
social de seu próprio trabalho como caracteres objetivos inerentes aos produtos
do trabalho, como propriedades sociais naturais de ditas coisas e, portanto, em
que também reflete a relação social que medeia entre os produtores e o trabalho
global, como uma relação social entre objetos, existente à margem dos
produtores” (cf. Marx, 1982, p.87-88).
Portanto pensamos que esses
aspectos “interpretação subjetiva” e “interpretação objetiva”, são importantes
sim em uma pesquisa sociológica, haja vista que nossa sociedade é composta por
pessoas que possuem sua bagagem cultura, suas crendices e como afirma Martins “A celebração e a oferenda das primícias da
produção agrícola foi muito difundida, até a pouco, no Brasil rural. Em parte
para evitar o mau-olhado, o caráter maligno do olhar invejoso. Em parte, para
evitar que a produção fosse possuída pelas forças do mal e, conseqüentemente, o
próprio trabalho fosse alcançado e mutilado pelo maligno (cf. Araújo, s/d,
p.117-120). Ritos de benzimento de edifícios na inauguração de empresas eram
muito difundidos na localidade, na época destas ocorrências. Mas, o que
aconteceu na fábrica não se ligava propriamente ao ato inaugural de tipo urbano
e sim à concepção agrária de que a riqueza criada pelo trabalho pode se insurgir
contra o trabalhador, se não for simbolicamente oferecido às forças do bem, que
se opõem ao mal e o exorcizam preventivamente”.